Não dá pra ler esse texto enquanto você escuta um vídeo

joão miguel bastos
4 min readJan 2, 2021

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Tem pelo menos uns 6 meses que eu tô enrolando pra escrever isso. Talvez só tenha saído hoje porque foi a primeira vez que realmente parei, sentei e escrevi. Esse ritual de dar play numa playlist de lo-fi hip hop, abrir o Word (tal qual os australopitecos) é gostoso, mas até chegar aqui eu preciso me libertar de um excesso de conteúdo. E nos últimos meses eu não consegui deixar de assistir uma péssima partida da série B, jogar um Fall Guys, editar um vídeo que não precisava ser editado naquela hora ou escutar o último álbum da Chloe x Halle pra escrever um texto. O pior, porém, é que muitas vezes eu fiz mais de uma dessas coisas ao mesmo tempo. A real é que toda essa ideia de multitarefas, de realizar duas atividades simultaneamente, não é fácil. Eu acho que não sei fazer isso, na verdade. E o curioso é que faço todos os dias.

Não lembro da última vez que joguei videogame sozinho sem escutar música, podcast ou, por exemplo, adiantar um freela nos momentos em que o jogo parava para carregar outra cena. Como se esses 20 segundos entre uma cena e outra que eu usei pra trabalhar fossem fazer uma diferença no final. Acho que a ideia tão difundida de otimizar o nosso tempo não é mal intencionada, já que as nossas horas realmente podem ser escassas, mas isso certamente prejudica muita experiência. E nesse balaio de “não perder tempo” também entra a prática de assistir vídeos e escutar podcasts acelerados, de ver um programa de TV enquanto tá no Twitter ou de, sei lá, durante o banho dar play naquele áudio de 3 minutos que você recebeu mais cedo no Zap.

Sério, dê esse mimo à sua mente, pra ela descansar no chuveiro. Quando não tem um monte de estímulos visuais e sonoros te bombardeando, podem surgir pensamentos que você nem imagina. Ou nenhum pensamento específico, só um descanso (cada vez mais urgente). Ou sua parceira entrando de capuz e facão pra te assustar num momento de vulnerabilidade. Nunca se sabe.

E, claro, eu não tô tentando criminalizar a prática de lavar a louça escutando As Melhores do É o Tchan™. Tirar o queijo incrustado no fundo da panela pode ser insuportável sem uma trilha sonora. Ouvir uma playlist enquanto realiza uma atividade mecânica não deve ser danoso. Mas quando você precisa prestar atenção em mais de uma coisa ao mesmo tempo, a situação começa a complicar. E até no primeiro caso, às vezes é bom dar uma desligada.

Você pode assistir o Flow Podcast com o Danilo Gentili enquanto toma banho e ainda se sentir bem. Isso tá longe de ser um julgamento moral, apesar de que se você me recomendar isso eu vou questionar nossa amizade. Mas pra mim é latente essa sensação de que tô absorvendo cada vez menos as coisas por conta desse constante estado de “eu poderia estar aproveitando melhor o meu tempo”. Claro que essa sensação também pode ser um sinal da idade, apesar de eu ainda estar mais perto dos 20 do que dos 30. Porra, não faz o menor sentido que seja idade. Eu tenho 23 anos, bicho.

Acaba que nessa ânsia de querer abraçar e dar conta de tudo ao mesmo tempo eu acabo fazendo minhas coisas pela metade, não aproveitando alguns momentos ou me esgotando completamente mais vezes do que o saudável (não que seja tranquilo se esgotar uma só vez, mas quase toda semana é insalubre).

Sei que esse excesso de informação também é reflexo do nosso tempo. Tem tanta coisa sendo feita, dita e produzida que até Deus deve estar cansado dessa parada de onipresença. “É coisa demais, gente, eu não consigo acompanhar, já deu! Chega! Me dá isso aqui! Acabou. CANSA esse negócio de estar em todo lugar, de ver tudo, conhecer tudo”, diria um Deus barbudo interpretado por um expansivo Fábio Porchat numa esquete que ninguém vai escrever porque provavelmente nem é tão engraçada assim. Já tem um monte de estudo sobre os efeitos dessa enxurrada de conteúdo que a gente recebe todos os dias, e a longo prazo deve dar pra sacar melhor o tamanho do problema.

Eu suplico: parem imediatamente de lançar produtos audiovisuais. Eu não quero morrer sem assistir Sopranos, a trilogia Antes do Amanhecer ou A Lenda de Korra porque insisti em terminar uma série medíocre gerada por algoritmo que tá na boca do povo™. Antes que me CRITIQUEM, eu gostei de “Eu Nunca”, vai. Não é uma série ruim. Mas ainda acho muito maluco esse lance de consumir uma série nova num fim de semana, partir pro próximo lançamento no fim de semana seguinte e assim sucessivamente.

Por incrível que pareça, streamar talvez tenha sido a coisa mais saudável que eu resolvi fazer nos últimos meses. Claro, passei a me alimentar melhor e ter uma rotina de exercícios, o que provavelmente vai me render mais tempo de vida no futuro do que ter feito live na Twitch tentando adivinhar em que local do mundo o Google Street View me jogou. Mas meu ponto é que quando você tá numa transmissão ao vivo, não tem muito espaço pra ficar nessa palhaçada de multitarefa. Então ali a gente se entrega 100%. Nesse sentido, as lives tem sido a atividade que eu mais tô aproveitando em sua totalidade desde que começou a pandemia.

Então, por mais que você não se sinta prejudicado pela necessidade de otimização do tempo, acho que pode ser legal tentar focar em uma coisa de cada vez, que é o tipo de conselho que avós dariam. E avós entendem de coisas. Não de tudo, já que tá cada vez mais claro que com a idade também dá pra acumular burrice. Mas esse seria um conselho bom.

Não quero que seja uma cagação de regra, é mais um “abre a boca e fecha os olhos” do bem. Confia. Sei lá, experimenta assistir uma péssima partida da série B sem mexer no celular. Se bem que… Isso certamente não é uma boa ideia. Mas joga um Fall Guys sem escutar, ao mesmo tempo, um álbum que acabou de ser lançado. Só tenta. Escuta Chloe x Halle. Isso. Faz isso. Como eu fiz umas 20 vezes ao longo do ano que acabou de acabar. E de todas essas vezes, só escutei sem fazer outra coisa ao mesmo tempo em umas três ocasiões. E foram as melhores.

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joão miguel bastos

ainda vou escrever um texto apenas sobre o verso “tira essa bermuda que eu quero você sério”.